Notícia
A gestão de resíduos sólidos no Brasil - ou, popularmente, do "lixo" - tem um marco em 2010, com o estabelecimento da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS, Lei nº 12.305), após 20 anos de debate no Congresso Nacional. No entanto, sua implementação segue insatisfatória.
Para explorar possíveis causas e indicar caminhos de aprimoramento, pesquisa realizada no Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais (PPGCAm) da UFSCar avaliou o arranjo de governança da Política, ou seja, como diferentes atores envolvidos se comportaram e interagiram ao longo deste processo.
Os resultados obtidos apontam baixa articulação entre esses atores - e, especificamente, ausência de atuação integrada entre ministérios - e estado crítico de vulnerabilidade de catadores e catadoras, dentre outras conclusões.
Para essa avaliação, foram realizadas 36 entrevistas, com atores selecionados para permitir a análise da articulação entre as três esferas políticas (federal, estadual e municipal) envolvidas na PNRS e vários grupos de interesse - de empresas a catadores e catadoras e à sociedade como um todo. Esse grupo abrangeu, por exemplo, representantes de ministérios; da Câmara dos Deputados; Confederação Nacional dos Municípios; Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento; Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais; e Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), dentre outras instituições.
A pesquisa foi realizada no escopo da tese de Cristine Diniz Santiago, hoje doutora em Ciências Ambientais pela UFSCar, sob orientação de Erica Pugliesi, docente no Departamento de Ciências Ambientais (DCAm) da Instituição. A metodologia da pesquisa, qualitativa, utilizou o process tracing, técnica que busca mapear processos pela descrição minuciosa de uma série de eventos. "A ideia é delimitar um determinado momento da história - neste caso, o contexto da implantação da PNRS e anos depois - e 'abrir' aquilo: quem fez o que? Por que acontece cada problema, cada avanço, e como foi?", sintetiza Santiago.
Para a definição das pessoas entrevistadas, utilizou-se o método chamado de "bola de neve", em que se inicia por contatos considerados chave, que vão indicando outros, e assim sucessivamente, até que as primeiras pessoas entrevistadas voltam a ser indicadas, o que evidencia a saturação do ciclo. Segundo a pesquisadora, este é um método importante para captar o conhecimento tácito, não registrado em documentos, que fica na oralidade e na memória das pessoas. "É importante entender como tudo aconteceu para justamente enxergarmos como podemos sair disso", acrescenta.
Os resultados obtidos apontam baixa articulação entre os grupos envolvidos com a temática nos últimos anos, o que prejudica a descentralização (que está na PNRS e é positiva, se feita de forma articulada) e a atribuição de responsabilidades.
No âmbito federal, o Ministério do Meio Ambiente (MMA), o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) - nome à época da pesquisa, de 2019 a 2022; hoje, o atual Ministério das Cidades - e a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) não trouxeram atuações integradas.
"O MMA, o MDR e a Funasa precisam estar articulados, pois os três têm competências na PNRS. A gestão envolve processos complexos, de transporte e tratamento à destinação adequada dos resíduos, além de coleta seletiva, de orgânicos e de rejeitos. É preciso que todos no Governo Federal 'disseminem' ou 'cobrem' dos municípios as mesmas ações - caso contrário, acontece o que mostrou a realidade a partir de 2016: cada um estabelece sua forma e critérios de gastos e lógicas, gerando confusão para o município e descoordenação da política, que, por sua vez, não caminha", detalha Santiago.
Outra questão crítica é o estado de vulnerabilidade de grupos essenciais para a gestão dos resíduos, como catadores e catadoras - responsáveis por 90% do material reciclado no País.
"A proximidade do Governo Federal com o movimento dos catadores (MNCR) - muito forte em 2010, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, quando a PNRS foi instituída - teve uma grande queda a partir de 2016. Análises documentais e entrevistas corroboram que praticamente todas as decisões na área de resíduos nos anos recentes não consideraram a participação social, por onde os catadores poderiam participar, demonstrando a vulnerabilidade desses grupos e um maior interesse, por parte do Governo Federal, em se articular com o setor privado, trazendo uma visão tecnicista", situa a pesquisadora.
Mudança de cenário
Para o avanço da Política, uma mudança de cenário é necessária, especialmente no que diz respeito ao grupo de catadores e catadoras. "Ele executa a coleta seletiva, além de ser importante na educação ambiental da população. Além disso, se comunicar com os cidadãos sobre seus deveres e ensiná-los sobre a importância do descarte correto de lixo é essencial", enumera.
O atual Governo Federal já evidencia uma possível alteração nesse cenário, já que, em 2 de janeiro de 2023, o Presidente Lula assinou despacho que determina à Secretaria-Geral da Presidência a elaboração de proposta para recriar o programa Pró-Catador - e, pela Portaria nº 2, de 5 de janeiro de 2023, houve a instituição de Grupo de Trabalho Técnico para atender ao despacho.
Ao mesmo tempo, é preciso trazer à tona as responsabilidades das empresas, que envolvem redução de geração de resíduos, aumento de produtos reciclados e reutilização e destinação ambientalmente adequada de seus produtos.
A destinação de recursos financeiros com direcionamento, para estados e municípios, via instância federal, também é importante para o fortalecimento da PNRS.
"A política pública é isso: encaixar algo que seja bom para a sociedade, para o Planeta e para o ambiente, ao mesmo tempo em que se combinam visões de mundo, realidades e percepções muito diferentes. Estamos diante de um grande desafio - e só é possível enfrentá-lo com um governo articulado e sensibilizado para a importância da temática", pontua Santiago.
A tese de doutorado na íntegra está disponível no Repositório Institucional da UFSCar.